Ópera de Pequim conquista Porto Alegre
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O espetáculo em si ainda não havia começado, na noite da quinta-feira (22), e o público já havia aplaudido em cena aberta os artistas chineses no palco do Theatro São Pedro. Era um prenúncio da ovação que viria ao final de duas horas de música, dança e artes marciais protagonizada pela Ópera de Pequim, que está em Porto Alegre a convite do Governo do Estado do Rio Grande do Sul para celebrar a Semana da China.
Antes de iniciar a encenação de quatro peças em versão reduzida, a Ópera de Pequim fez subir ao palco um apresentador que, didaticamente, explicou algumas características da dramaturgia chinesa, desde a música que conduz as atuações, passando pela maquiagem dos atores e detalhando os principais arquétipos com os quais o espectador pode se deparar.
A primeira saudação da plateia foi dirigida aos músicos, que mostraram como diferentes sentimentos são retratados na trilha sonora das obras em questão. Os instrumentos, ambos de corda e sem nenhuma semelhança com os ocidentais, soaram notas tristes e esfuziantes, muito agudas.
O segundo aplauso em cena aberta veio acompanhado de risadas, quando o apresentador explicou que a Ópera de Pequim trabalha com ficção e exemplificou. “Nós saímos de Pequim, pegamos um avião e viajamos 30 horas para chegar a Porto Alegre. Mas se fôssemos representar isso no palco, não seria em 30 horas, pois nenhum público aguentaria”, explicou, fazendo rir ao teatro.
Em seguida ilustrou a fala, representando uma breve cena na qual entre o local de partida e o destino final, ele caminhou em círculo, com aqueles graciosos passos que caracterizam a cultura chinesa. E completou: “Isso numa visão de sociedade saudável como a nossa, onde não há trânsito”. Foi a deixa para o teatro vir abaixo.
Complexos e multitalentosos
As esquetes que se seguiram (Adeus Minha Concubina, Combate na Pousada, A Cunhada Zangada e Rio Outono) deram uma pequena amostra da multiplicidade de talentos exigidas dos artistas orientais pela companhia. E foram o suficiente para concluir o quão complexa pode ser a dramaturgia chinesa.
Se no palco os atores mostravam habilidade para viver personagens cômicos e trágicos, irados ou tímidos – tendo como base não apenas a interpretação, mas também o canto, a dança e as artes marciais –, na plateia os espectadores precisaram se esforçar e aguçar os sentidos para se apropriar da forma de atuar chinesa, minimalista, baseada muito mais em sutis expressões faciais do que em um amplo gestual, como nos acostumamos no ocidente. Assim, estar atento à forma de olhar e aos esboços de sorriso dos protagonistas de cada obra era fundamental para compreender o que se passava.
É verdade que na primeira e na última peça houve legendas, mas elas eram dispensáveis se a intenção fosse entender de forma genérica o que se passava na história. Para isso, muito contribuiu a explicação do apresentador, no início da noite, que revelou ao público como a maquiagem era importante para o teatro chinês. Assim, um personagem que tem as bochechas rosadas representa alguém violento, bravo. Também aqueles papeis cuja função é fazer o público rir, tem essa característica expressa na pintura do rosto, que ganha contorno de palhaço, com o nariz avermelhado, por exemplo. Nos personagens masculinos, as sobrancelhas diziam muitos sobre o destino: longas e curvadinhas, significam muitos anos de vida, mas se trazem desenhos incomuns, confusos, bagunçados, são azar na certa, infelicidade pura.
Lições para viver em sociedade
Cada espetáculo – que teve a duração média de 20 minutos – trazia em si uma mensagem comportamental que, embora refletissem costumes em alguns casos milenares, podem ser uma pista de como esse povo entende a vida em sociedade.
A primeira peça, Adeus Minha Concubina, retratava o que os orientais compreendem como a fidelidade feminina e o compromisso com o coletivo em detrimento do indivíduo: a mulher que, pela última vez, serve uma bebida e dança para relaxar o marido – um rei, em plena guerra – e em seguida se suicida para não obrigá-lo a protegê-la, de maneira que possa se dedicar exclusivamente à defesa do reino e de seus súditos.
Em seguida, Combate na Pousada deu uma mostra da habilidade marcial dos atores; foram 15 minutos de saltos, acrobacias no solo e golpes desferidos, tudo belamente coreografado para encenar a história de uma dona de pousada que mata seus hóspedes para roubá-los. Embora ambos os protagonistas tivessem um quê de vilão – já que o outro personagem havia sido banido de seu reino por cometer um assassinato – no final é o hóspede quem vence a batalha. Para o público, foi uma das encenações mais interessantes, com muita ação e nenhum texto.
O terceiro ato trouxe ao palco talvez aquela que foi a menos popular das peças, A Cunhada Zangada. Apesar da belíssima interpretação dos atores, que protagonizaram o que no Brasil poderia ser um repente –, já que consistia em uma interminável tentativa de convencimento mútua em forma de canção –, o fato de que quase não havia movimentação de palco, apenas texto (cantado, é verdade, mas sem legendas) entediou um pouco a plateia. Tratava-se de um diálogo entre um juiz que condena o sobrinho e a sua cunhada, inconsolável com a decisão. A mensagem contida na peça, entretanto, era clara: a justiça vale para todos.
A preferida do público
Para compensar, a última apresentação da noite foi a que mais agradou a plateia. Por um lado porque Rio Outono era a que provavelmente mais continha elementos identificados com a cultura e a dramaturgia ocidental.
Havia um cenário (imaginário, mas bastante palpável porque os personagens contracenavam com objetos através de mímicas), enredo reconhecível (uma monja que abandona a vida religiosa por ter se apaixonado) e uma dramaturgia mais convencional para quem vive deste lado do globo terrestre, com diálogos, movimento, passagem de tempo.
O desempenho dos atores, entretanto, foi fundamental para o sucesso da peça. A história gira em torno da viagem empreendida pela monja enamorada em busca de seu amante. Ele embarcou em um navio e ela precisa alcançá-lo com a ajuda de um velho barqueiro e seu veículo movido a remo. Assim, ao longo do quase 30 minutos de encenação dentro do barco, os atores reproduzem os movimentos da água com o próprio corpo, em uma sincronia de movimentos que impressionou a plateia. Além disso, o velho barqueiro encarnava o palhaço – que levou o público às gargalhadas mais de uma vez.
Para culminar, o ator que desempenhava o papel era o mesmo apresentador que antes de cada esquete entrava em cena trazendo informações sobre o que se veria a seguir. Com isso, o público foi, em cada intervalo entre uma peça e outra, notando a sua transformação – figurino, maquiagem, barba – no personagem. Ele já havia conquistado a empatia da platéia e não foi difícil emprestá-la ao velho barqueiro.
A Ópera de Pequim, declarada pela Unesco Patrimônio Intangível da Humanidade, acabou a noite sendo ovacionada pelo publico em pé no Theatro São Pedro.
A cultura, os negócios e a diversidade
As apresentações da Ópera de Pequim (que está em cartaz também nesta sexta-feira (23), já com ingressos esgotados), foram o ponto alto da programação cultural da Semana da China no Rio Grande do Sul. O evento tinha como objetivo aproximar o país oriental do Estado, gerando oportunidades de negócios e intercâmbio artístico.
“Conhecer a cultura de um país é absolutamente indispensável para comprar e vender, pois nos apresenta formas de pensar dessa população”, resumiu o presidente da Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (Fiergs), Heitor Müller, que estava na plateia do São Pedro e cuja entidade sediou alguns dos encontros de negócios do evento.
O próprio governador Tarso Genro, que descerrou uma placa em homenagem à apresentação histórica, agradeceu o interesse dos chineses no Rio Grande do Sul. “Estamos emocionados com a grande delegação de empresários, políticos e protagonistas desta milenar cultura que vieram ao Estado. É um orgulho recebê-los”, saudou.
Assistindo pela segunda vez ao grupo, o jornalista Flávio Tavares elogiou: “Eu os conheci há 60 anos, em 1954, em Pequim. Revi agora a beleza e autenticidade de seus espetáculos, que mostram que a velha cultura chinesa não é desprezada naquele país”.
Já os irmãos William e Yihmin Liu, brasileiros descendentes de taiwaneses, acreditam que travar contato com este tipo de manifestação ajuda as nações a serem mais tolerantes com a diversidade étnica e cultural. Por sua vez, os amigos Júlia Balzan, Bruno da Silva Brixius e Lucas Prates Silveira – todos estudantes de mandarim, no Instituto Confúcio, na Ufrgs – se sentiram estimulados a ampliar a dedicação ao novo idioma.
A Semana da China do Rio Grande do Sul prossegue até domingo com várias atrações culturais, todas gratuitas, como cinema, apresentações de dança e artes marciais e feira de culinária típica. A programação completa pode ser conferida no site do evento: http://www.semanadachina.rs.gov.br/inicial
Texto: Naira Hofmeister
Edição: Redação Secom (51)3210-4305